domingo, 19 de outubro de 2008

O DESABAFO DO AMIGO PUNK




- Pois é doutor, aí eu atravessei a Oswaldo Aranha e entrei no Parque Farroupilha, vendi dez adesivos e ganhei dez pila, depois fiquei com uma metaleira cheia de piercings, mais adiante encontrei dois amigos se divertindo com a marijuana e me juntei à eles. São meus parceiros, de dia a gente dorme igual coruja.

Não gosto da luz, fica todo mundo olhando atravessado pra mim como se eu fosse um bixo, à noite passo despercebido dos olhares preconceituosos. Fora o corre-corre, atropela-atropela, morre-morre do trânsito. À noite os veículos vão dormir e a gente pode andar à vontade pelo meio da rua.

Também tenho nojo, eu e os parceiros, dessas gurias que pintam o cabelo de loiro e passam no ferro quente. Elas me ignoram, pensam que eu sou inferior a elas só porque eu uso o cabelo diferente. Pelo menos eu tenho personalidade, elas são umas Maria-vai-com-as-outras, um bando de chinesinhas, tudo igual. Por isso que eu gosto da noite, é quando elas desaparecem da minha área. Se uma delas passa do meu lado eu cuspo na cara. Já fiz isso uma vez. Ela saiu furiosa me xingando enquanto corria apressada de mim como se eu fosse um marginal.

Pensa que eu não entendo as mina é? Eu sou o campeão da noite, mas só fico com a mina se ela for humilde, tá ligado? Já tive uma só minha. Infelizmente, ela morreu de AIDS há pouco tempo. Não fui eu não doutor. Eu tô com o sangue limpo, pode fincar a agulha e levar no Hemocentro. Ela cresceu na rua igual eu, não tinha lugar na casa do pai dela. Eu, nem pai tive, ele morreu baleado quando a vagabunda da minha mãe tava grávida de mim. Ninguém ligava pra a gente pedindo dinheiro no semáforo, no máximo davam umas moedinhas com a cara fechada.

Eu tô di saco cheio dessa indiferença da burguesia com a gente que já nasce sem futuro. E a única esperança de acabar com essa desigualdade social era o Fórum Social Mundial. Eles pensam que eu sou um mané, mas eu não sou não. Estudei até a oitava série no Julinho. Hoje eu podia ser doutor igual ao senhor. Também não vou ficar lamentando. Se eu tô nessa situação é porque Deus quis. Nada é por acaso. Pelo menos não sou político corrupto.

Nossa como eu viajo! Eu tava falando da roda de marijuana na Redenção com os meus parceiros. A gente ficou lá até as onze e meia trovando fiado daí eles me chamaram para ir no bar do João. Tava lotado como sempre. A gente bebeu todas, cheirou todas, azarou todas e passadas umas duas horas a gente ouviu uns gritos e saiu correndo na direção do som. Tava todo mundo em roda do presunto. Parece que ele tava devendo. Foi a última vez que o bar do João abriu. Logo chegou a polícia e a gente saiu correndo para não ser revistado da cabeça aos pés. Quando eram três da madrugada eu chegava em casa, com asa, desiludido da justiça humana.

E então doutor, o senhor vai ficar com um adesivo?

- Quanto custa?

- Pra o senhor eu faço por um real, só porque o senhor ficou dez minutos ouvindo o meu desabafo. Desculpa o bafo.

- Pega o teu real. Quero ver o que diz.

- Viva a Cannabis?

- Não, esse não.

- Paz e amor?

- Não, esse não.

- Anula lá?

- Não, esse não.

- Hay gobierno soy contra?

- Não, esse não.

- Sexo, drogas e funk?

- Não, esse não.

- Bush é busha?

- Esse, gostei desse.

- Tchau doutor.

- Tchau amigo punk.


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