domingo, 19 de outubro de 2008

JOGO DE DAMAS I




David Coimbra e as vegetarianas têm algo em comum, ambos adoram as vacas. Ele, no prato, elas, no pasto.

David Coimbra é um jornalista e escritor competente, corajoso e irônico, que usa, vez por outra, a sua coluna semanal, para fazer gracinhas com as vegetarinas, que ficam muito irritadas com ele. Elas mal sabem que ele só quer a atenção delas. Nada mais.

David Coimbra, uma bela noite, teve um pesadelo. Acordou todo suado e com taquicardia. Não tendo como decifrar o seu terrível sonho recorreu ao Dr. Ronan, o pseudoanalista. Eis a descrição precisa do sonho:

- Estava eu autografando a minha obra intitulada Jogo de Damas, em meio a holofotes de camera-men e flashes de fotógrafos, perante uma longa fila que descia escada abaixo do segundo andar da livraria Cultura, quando levantei meus olhos e mirei o leitor à minha frente. “David Beckham”. Ele deu um sorriso e recostou-se na cadeira: “É a sua vez”.

Voltei meus olhos novamente para a mesinha na qual autografava e lá estava, no lugar do livro, um tabuleiro com 32 casas pretas e 32 casas brancas alternadas, contendo 24 peças, 12 para cada lado. Mas as peças, ah meu Deus!, as peças eram pequenos grãos de soja. Pensei: “Só pode ser obra das vegetarianas”.

Pois bem, o jogo prosseguiu e David Beckham fez uma dama. Não acreditei quando me dei conta que a dama era a sua mulher Victoria. Vais tu vou eu, vais tu vou eu comi a danada. Que sabor! Infelizmente não consegui comer todos os grãos de soja do Beckham e ele ganhou. Pudera! É um craque! Quando retirou meu último grão do tabuleiro a platéia toda dos meus leitorinhos vibrou.

Como a noite era minha, em vez de sair eu saiu Beckham, e sentou-se à minha frente Zinedine Zidane. De pronto a platéia começou a torcer por ele: “Zidane! Zidane! Zidane!”. Também gritei: “Se dane”. Fixei meus olhos mais uma vez no tabuleiro decidido a vencê-lo. Seria a revanche. Maldito! Malditos franceses! Hoje poderíamos ser pentacampeões. Novamente, as peças não eram peças. Desta vez, imagine doutor!, castanhas-do-pará. Bom, pelo menos eram maiores que os grãozinhos de soja, mais maleáveis. Certamente obra das vegetarianas.

Do alto de uma estante de livros, uma coruja tocou uma corneta, dando início à partida. Toque findado pronunciou o célebre “Que vença o melhor!”. Tive medo. Estes símbolos da sabedoria são de um mau agouro previsível.

Veja o senhor: Fui comendo castanha após castanha do meu adversário, e lá pela décima primeira meu fígado se ressentiu de tanta gordura. Retiraram-me às pressas em uma padiola. Administraram-me algo muitíssimo amargo e, como um lutador de boxe que se levanta do chão após um nocaute, retornei à luta. Com alguma dificuldade continuei comendo as castanhas do Zidane até que, após a última, sucumbi. Quero dizer, meu estômago devolveu tudo. Medicaram-me novamente e eu, cambaleando, fraco, enjoado, voltei à sala, satisfeito pela minha vitória. Sabia! Bem que eu tinha desconfiado daquela coruja. Não podia resultar em boa coisa uma coruja juíza. Para piorar a feiosa árbitra impediu que os fogos de artifício fossem estourados em minha homenagem. Alegou poluição sonora. Sorri satisfeito e gritei fairplay, quando Zidane retirou-se cabisbaixo.

Logo após entrou Ronaldo, o Fenômeno, acompanhado pela namorada. A coruja deu o sinal e a partida começou normalmente. Ronaldo moveu a primeira peça, aliás, o primeiro grão de feijão, e eu desloquei o meu primeiro grão de arroz. Ali estava o dedo das vegetarianas, outra vez. O mais interessante é que enquanto eu pensava qual jogada faria, Ronaldo discutiu com a namorada e terminou com ela. Agora era a sua vez de jogar e antes que ele levantasse a mão para tocar no grão de feijão já tinha angariado outra namorada. Era ainda mais bonita que a anterior. Assim prosseguimos, com o Fenômeno trocando de namorada a cada nova jogada.

A certa altura ouviu-se um som que, à princípio, ninguém conseguiu decifrar. Foi aumentando de volume e, enfim, entendemos: “Ronaldo tá gordo. Ronaldo tá gordo. Pshhta!”. Olhamos para todos os lados. Quem seria? Até que... fiat lux! Olhei para cima e dei de cara com um papagaio que conversava com a coruja. Quando viu que eu estava olhando para ele repetiu: “Ronaldo tá gordo. Ronaldo tá gordo”. E a coruja pediu silêncio: “Pshhta!”.

Ronaldo fez sinal que ia dar um sopapo no engraçadinho, mas eu consegui acalmar os seus ânimos com a promessa de trocar aquele feijão com arroz por uma feijoada. Os olhos dele brilharam! Encerrei a partida onde estávamos. Descemos para a praça de alimentação e deixamos o papagaio para trás falando sozinho. Ronaldo comeu até se fartar, agradeceu e foi-se embora sozinho.

Voltei para o meu posto. Em seguida assentou-se Kaká com a camiseta do Milan, como que me afrontando. Temi pelas minhas 12 peças. Juro! Imaginei na minha mente fértil que o Kaká trouxesse na bolsa um cheque do seu presidente e arrematasse todas as minhas 12 peças de uma só vez. Ainda mais com aquela coruja por perto me agourando. Dada a largada, dei-me conta que as minhas peças eram grãos de lentilha, e as peças do meu adversário, grãos de milho. Pareceu-me a comemoração do Ano Novo. Abriu meu apetite. Mandei vir churrasco e cerveja. Comi e bebi com o Kaká, trocamos figurinhas, e toda aquela farra me fez perder a concentração, de maneira que a vitória ficou para ele. Mas a camiseta dele ficou para mim. Vesti-a: I belong to Jesus. Até parece! Eu um seguidor de Cristo. Cristo era vegetariano. Ou será que Jesus comeu peixe com os pescadores?

Saiu Kaká e entrou o Ronaldinho Gaúcho vestindo uma camiseta do Pernalonga. Mal a coruja deu o sinal de start o Pernalonga pulou fora do peito do Ronaldinho e saiu andando pela sala. Desceu na praça de alimentação e voltou mastigando uma cenoura. E aí velhinho? Vai uma cenoura? Agradeci e tentei me concentrar no jogo. Pernalonga ficou ali me pentelhando, roendo aquela cenoura o tempo todo. Meteu-se no meu jogo, deu palpites errados, e eu acabei perdendo. Terminada a partida pulou de volta para o peito do Ronaldinho. Bem que dizem: o Ronaldinho mata no peito. Detalhe! Já ia me esquecendo de contar. As peças do jogo com o craque do Barcelona eram: do meu lado, grãos-de-bico; do lado dele, grãos de trigo. Minúsculos grãos de trigo. Essas vegetarianas!

Num relance, num piscar de olhos, não me encontrava mais na livraria Cultura e sim, em um restaurante chique em Dubai, juntamente com Beckham, Zidane, Ronaldo, Kaká e Ronaldinho. Peguei o cardápio e lá encontrei, argh!, bolinhos de grão-de-bico chamados falafel. Desci os olhos mais um pouco e li, ecas!, tabule, uma salada de trigo burgol. Que estranha coincidência com o meu último jogo de damas. Como sou carnívoro pedi kibe, estava ótimo.
Não demorou muito, uma comitiva acompanhando o xeque Mohammed bin Rachid adentrou o salão, e parou à minha frente. Para minha surpresa e alegria, o xeque pediu-me um autógrafo. Em seguida, convidou-me discretamente para uma reunião particular em sua residência.

Este declarou estar admirado sobre o meu conhecimento sobre as mulheres. Bebemos muito, às escondidas, enquanto conversávamos sobre o Jogo de Damas. Assim que o fogo do assunto se tornou em brasas, ele levantou-se e conduziu-me pelos corredores luxuosos do seu palácio, para que eu o conhecesse e apreciasse. E eu fiquei pasmo, mas não só por causa da edificação e de seus adornos. Esfreguei os olhos não querendo acreditar. Enquanto caminhávamos, dezenas e dezenas de mulheres saiam das portas que davam acesso aos quartos, e saudavam o xeque. Entre elas estavam, que horror!, entre elas estavam as vegetarianas, todas as vegetarianas. Eu sei que elas me reconheceram, mas disfarçaram. Provavelmente por respeito ao xeque. Eu sei que elas me adoram.

Essa foi a pior parte do pesadelo doutor, como é difícil para mim aceitar. Eu desejei-as, desejei que fossem minhas e não do xeque. Sendo assim propus um duelo de esgrima àquele soberano, e ficou combinado que o vencedor ficaria com todas as mulheres do seu harém.

Ainda baqueado pelas castanhas-do-pará, lutei até o amanhecer e, enquanto os cantores do Alcorão entoavam suas primeiras notas naquela manhã, fui declarado o vencedor. Por Alá! Alá me deu esta vitória. Fui nomeado xeque Califa Al David bin Coimbra, e designado para escolher as novas mulheres do soberano. Que honra! O magnata do petróleo ficou por demais satisfeito com as minhas escolhas. Presenteou-me com um camelo, um dos seus melhores camelos.

Numa determinada tarde andava eu em cima do Sedento, pelos poços de petróleo do xeque, quando me apareceu o Pequeno Príncipe. O principezinho destrinchou aquela sua ladainha sobre humanizar as pessoas e eu fiquei só ouvindo. Refleti sobre as palavras dele e lembrei-me do Pernalonga. Lembrei-me de que o seu inventor, ao ser indagado por que seus personagens eram todos animais, respondeu: “Porque é mais fácil humanizar os animais do que humanizar as pessoas”. Pensei, por um momento, na luta das vegetarianas para proteger os animais dos homens desumanos que os maltratam. Mas não cheguei a ter uma crise de consciência por ser um carnívoro assumido. Apenas refleti.

Ao retornar dos meus pensamentos o Pequeno Príncipe já tinha partido. E eu não me encontrava mais junto ao poço de petróleo. Achava-me junto à uma jazida de gás natural em território venezuelano. Imediatamente parti em direção à capital. Levei, para ser exato, 40 dias e 40 noites viajando.


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