domingo, 19 de outubro de 2008

JOGO DE DAMAS III



No dia seguinte cedinho, despedi-me dos mosqueteiros, e pus-me a caminho, montado no Jego. Percorridas algumas milhas paramos para beber água num açude dentro de uma propriedade particular. Depois da sorte da noite precedente, o azar me trouxe um enxame de abelhas, que me picaram cada milímetro de pele exposta. E eu, fui obrigado, para não morrer, a me atirar no açude e segurar a respiração por algum tempo. Pobre Jego! Ficou tão desesperado que saiu correndo pasto afora sem saber o que fazer para me ajudar.

Passado o susto, arrastei-me por uns 10 passos longe do açude, o corpo todo inchado, e desmaiei. Fui recolhido pelo apicultor, um senhor de bigode preto, que viera ver por que o Jego corria para lá e para cá sem destino. O homem colocou-me numa cama e mediu minha temperatura: 39°. Minhas proteínas estavam quase se decompondo. Fui medicado e... pimba... desmaiei de novo. Na janela o Jego me espiava zeloso.

No meio da madrugada acordei do meu desmaio. O apicultor se achava em pé, defronte ao espelho, ajeitando o bigode. Falou uma coisa que me deixou de cabelos em pé: “Amanhã ele será meu”. No outro dia, cedinho, pegou a espingarda atrás da porta, e saiu de mansinho. Nunca mais retornou. Pelo que investiguei andava há dias tentando caçar uma besta fera, que todas as noites invadia a sua propriedade e liquidava com uma das suas ovelhas.

Na hora do almoço, como minha febre tivesse baixado, senti fome, e procurei algo pra comer. No armário da cozinha encontrei algo como alpiste. Peguei o pote na mão e li o rótulo: ‘Pólen de abelhas. O alimento mais completo da natureza’. Pensei comigo mesmo: “As vegetarianas não perdem por esperar, agora eu sei que o alimento mais completo da natureza é de origem animal”.

Passada uma semana desde o incidente com as abelhas, já me sentia melhor e, portanto, levantei acampamento. Pus-me a caminho outra vez. Porém, algumas dezenas de milhas adiante, desviei-me da rota para chegar em uma pequena cidade. Abasteci o Jego, que já estava na rapa de gás natural, e comprei um X-carne. Na saída da cidade detive-me, por um quarto de hora, ao lado do Jego, num ajuntamento de pessoas que viemos a descobrir ser um enterro.

Meus olhos literalmente saltaram da órbitas, quando distingui, em meio à multidão, o fantasma do apicultor, que vinha na minha direção. Disparei a mil por hora rua afora, e dobrei o máximo possível de esquinas para que ele me perdesse de vista. Meu coração batia acelerado. Vez por outra eu olhava para trás e ele continuava me seguindo. Não sabendo mais o que fazer para acabar com a perseguição do fantasma, atirei-me no chão; e ele passou por cima de mim como um vento norte desnorteado.

Assim que o meu coração voltou a bater em ritmo normal me levantei, e caminhei apressado em direção à estrada de ferro. Eu estava decidido a pular para dentro de um dos vagões do trem de carga e me mandar o mais depressa possível para bem longe dali. Assim o fiz. Minha queda dentro do vagão foi amortecida, felizmente, por uma pilha de sacos de estopa. Eu ainda estava bastante agitado, mas logo me acalmei e adormeci com a cabeça recostada na parede de ferro. Mais tarde acordei, olhei para cima, e contemplei as estrelas cintilando naquele lençol negro que é a abóbada celeste longe das luzes citadinas. Onde estaríamos? Não importava. Qualquer lugar era melhor que aquela cidade com suas assombrações. Viajamos a noite inteira, o cheiro de capim gordura me enchendo as narinas.

Não sei a que horas adormeci de novo. Só sei que ao despertar o trem estava parado, e o sol já se espreguiçava no horizonte. Ouvi o som de vozes e máquinas e concluí que logo começariam a encher os vagões de minério. Sem hesitar, apoiei meu pé numa fenda, me agarrei na borda do vagão, e pulei na terra, ansioso por descobrir o que havia lá fora. Sem que me vissem, me embrenhei mata a dentro em busca de algo que calasse a boca do meu estômago. Ora, eu um homem nascido e criado na cidade desconheço os perigos da mata nativa, e não tardou muito para que as suas surpresas me recepcionassem. Pisei em aranhas, dei nó em serpentes, depilei porcos-espinhos, arranquei chifres de rinocerontes, quebrei galhadas de alces e, finalmente, encontrei o que desejava: frutas. Enchi os meus bolsos e comi várias em baixo do pé, sem qualquer sinal de perigo. E, tão logo me satisfiz, pus-me a caminho de volta.

Estava muito bom para ser verdade. Não muito adiante o meu fantasma se materializou em forma de onça bem à minha frente. Imediatamente, pus-me de joelhos implorando por socorro. Quando abri os olhos a onça estava ajoelhada, mãos postas, em oração. Estupefato interrompi-a: “Com licença Dona onça, a senhora também é cristã?”. “Não, é que eu costumo rezar antes das refeições”. Senti um frio descendo pela espinha. Pensei: “Que tática usarei agora para me defender desarmado dessa onça agradecida?”. Pensei nas vegetarianas e nos direitos dos animais que elas tanto defendem, então apelei para a razão da onça: “Ei Dona onça, a senhora está desrespeitando os direitos dos homens”. A onça recuou um passo. “Dona onça a gente tem que levar um papo sobre ética humana”. A onça recuou mais um passo. Aí fui amolecendo o coração: “Dona oncinha, quer comer as minhas frutas?”. Dito isto, esvaziei meus bolsos das frutas recém colhidas, e larguei fora, antes que a onça mudasse de idéia e seguisse o seu instinto natural.

Saí correndo, pisando em caranguejeiras, e cheguei de volta à extração de minério em menos tempo do que o previsto. O trem já estava com a caldeira fervendo. Só deu tempo de eu pular pra dentro de um vagão e em seguida a locomotiva começou a se movimentar. Ouvi claramente quando o maquinista disse para o foguista: “Caracas! Aqui vamos nós”. Enchi-me de alegria, pois em breve alcançaria meu objetivo, meu alvo, meu goal. Exclamei entusiasmado: “Caracas! Até que enfim a civilização”.

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